terça-feira, 30 de junho de 2009

O CAVALO PERDIDO


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Por isso, mais adiante - e apesar dos momentos de angústia que passei naquela sala -, nunca deixei de olhar para os móveis e para as coisas brancas e pretas com algum resplendor de magnólias.
As coisas que eu havia trazido da rua ainda não haviam dormido, e já me achava caminhando nas pontas dos pés – para que Celina não percebesse – e disposto a violar algum segredo da sala.
A princípio, ia em direção a uma mulher de mármore e passava-lhe os dedos, pela garganta. O busto estava colocado numa mesinha de pés longos e frágeis; nas primeiras vezes, ela cambaleava. Eu tinha agarrado a mulher pelo cabelo com uma mão para acariciá-la com a outra. Subentendia-se que o cabelo que não era cabelo, mas de mármore. Porém, a primeira vez que pus a mão em cima dela para me assegurar de que não se moveria, produziu-se um instante de confusão e esquecimento. Sem querer, ai achá-la parecida com uma mulher real, eu tinha pensado no respeito que lhe devia, nos atos que correspondiam ao trato com uma mulher real. Foi então que tive o momento de confusão. Mas depois sentia o prazer de violar uma coisa séria. Naquela mulher se confundia algo conhecido – a semelhança com uma de carne e osso, o fato de saber que era de mármore e outras coisas de menor interesse -; e algo desconhecido – o que tinha de diferente das outras, sua história (eu supunha vagamente que a teriam trazido da Europa – e supunha a Europa ainda mais vagamente -, em que lugar estaria quando a compraram, os que a tocaram etc.) – e sobretudo o que tinha a ver com Celina. Mas no prazer que eu sentia, acariciando-lhe o pescoço, confundiam-se muitas coisas mais. Os olhos desiludiam-me. Para imitar a íris e a menina tinham perfurado o mármore, e pareciam os olhos de um peixe. Causava incômodo que não tivesse se dado ao trabalho de imitar os risquinhos do cabelo: aquilo era uma massa de mármore que esfriava as mãos. Quando o seio já ia começar, o busto acabava, e surgia em cubo em que toda a figura se apoiava. Além disso, no lugar em que ia começar o seio, havia uma flor tão dura, que se alguém passasse os dedos depressa podia se cortar. (Também não achava graça em imitar uma dessas flores: havia montões delas em qualquer um dos canteiros do caminho.)
Depois de olhar e tocar a mulher por algum tempo, também se produzia em mim uma lembrança triste de saber como eram os pedaços de mármore que imitavam os pedaços dela; e já se haviam desfeito bastante as confusões ente o que era ela e o que seria uma mulher real. Contudo, na primeira oportunidade de ficarmos a sós, lá se iam meus dedos rumo à garganta dela. E até havia chegado a sentir, em momentos em que outras pessoas nos acompanhavam - quando mamãe e Celina falavam de coisas chatíssimas -, certa cumplicidade com ela. Olhando-a de mais longe e como que de passagem, tornava a vê-la inteira e a ter um instante de confusão.



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